A suspensão do Decreto nº 9.355/2018 não afeta o Programa de Desinvestimento da Petrobras, mas cria uma oportunidade para a estatal
Esta não é a primeira nem será a última vez que o regime de aquisição e alienação de bens e direitos da Petrobras passará pelo crivo do Poder Judiciário, em razão de questionamentos de fundo jurídico-ideológico. Até aqui, não há qualquer novidade: tudo que envolve a Petrobras, pelo montante e visibilidade de suas operações, gera acalorados debates em função de visões socioeconômicas distintas sobre o papel exercido pela Petrobras na sociedade brasileira.
O Decreto nº 9.355/2018 foi baixado para “estabelecer regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a cessão de direitos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e hidrocarbonetos fluidos pela Petróleo Brasileiro S/A – Petrobras, na forma estabelecida pelos arts. 29, 61, caput e parágrafo primeiro, e 63 da Lei do Petróleo (Lei nº 9.478/97), e no art. 31 da Lei do Regime de Partilha (Lei nº 12.351/2010).
Tais artigos autorizam a Petrobras (i) a exercer suas atividades-fim em caráter de livre competição com outras empresas, (ii) a realizar a cessão dos contratos de concessão e de partilha da produção mediante, respectivamente, a aprovação prévia da ANP e do MME, e (iii) a formar consórcios para expandir suas atividades.
À época dos fatos, a visão do governo esteve refletida na Exposição de Motivos nº 245/2017 MP-MME, que fundamentou a edição do Decreto nº 9.355/2018. A ideia era que o referido Decreto contivesse normas de orientação para o mercado em relação aos processos de farm-out e de formação e execução de consórcios de que a Petrobras fizesse parte.
Os argumentos contrários à suspensão do Decreto nº 9.355/2018 foram rechaçados pelo Ministério Público Federal, em Parecer da Procuradora-Geral da República, enquanto que aqueles favoráveis à permanência do referido Decreto foram endossados pela Manifestação da Advogada-Geral da União. Resumidamente, AGU sustenta que as atividades de exploração, desenvolvimento e produção de hidrocarbonetos são regidas por normas próprias em virtude da especificidade do tema, previstas na Lei do Petróleo e na Lei do Regime de Partilha, que autorizam a cessão de direitos mediante prévia aprovação da ANP ou do MME, esta última para as áreas localizadas no polígono do pré-sal. Por sua vez, o Ministério Público Federal defende, em síntese, a sujeição das regras de cessão de direitos e de aquisição de bens e serviços pela Petrobras ao regime previsto na Lei das Estatais.
De início, é importante salientar que a decisão do STF concede o mesmo tratamento jurídico a dois temas distintos: (i) de um lado, a alienação de ativos no âmbito do programa de desinvestimento da Petrobras e (ii) de outro, a aquisição de bens e serviços pela Petrobras em consórcios de que a estatal é operadora.
Apesar de ambos os temas versarem, no mérito, sobre a vinculação da Petrobras ao regime de licitação, estamos diante de situações de fato completamente distintas, já que o programa de desinvestimento visa a seleção da melhor oferta para a alienação de ativos de exploração, desenvolvimento e produção, enquanto que, nos consórcios operados pela Petrobras, esta busca a proposta mais vantajosa para a aquisição de bens e serviços de terceiros.
Feita essa distinção, importa enfatizar que estamos discutindo a legalidade do Decreto nº 9.355/2018, uma norma periférica, que não é, e nunca foi essencial, para a continuidade do programa de desinvestimento da Petrobras em relação aos atuais e a futuros ativos.
Em 20 de dezembro de 2018, a Petrobras, acertadamente, divulgou press release, relatando, em linhas gerais, que a decisão proferida na ADI nº 5942 seria inócua em relação aos desinvestimentos ora em curso, já que estes tiveram início antes do referido Decreto, tendo em vista o disposto no art. 91, § 3º, da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016).
Apesar do receio coletivo de que a referida decisão possa afetar a inclusão de novos ativos de upstream no programa de desinvestimento da Petrobras, é fato que a suspensão do Decreto é também inócua em relação à cessão futura de outras áreas pela Petrobras e não afetará a continuidade do seu programa de desinvestimento. Essa afirmação baseia-se na existência de outras normas que legitimamente regulam o regime a ser observado por sociedades de economia mista, a exemplo da Petrobras, como veremos.
Esse receio decorre em parte do regime anterior, do já revogado artigo 67 da Lei do Petróleo, que estabelecia que a contratação de bens e serviços pela Petrobras seria precedida de “procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República”. Na esteira da Lei do Petróleo, foi então baixado o antigo Decreto nº 2.745/1998, que aprovou à época o que viria a ser o “Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras”.
De notar que, mesmo no regime anterior, não havia necessidade de decreto para regulamentar a cessão a terceiros de direitos de exploração, desenvolvimento e produção pela Petrobras. Essa exigência estava limitada apenas à contratação de bens e serviços pela estatal em regime simplificado de licitação.
Em junho de 2016, com a promulgação da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016), foram estabelecidas novas diretrizes para o procedimento licitatório de aquisição e alienação de bens e ativos por sociedades de economia mista e empresas públicas.
Dentre outras providências, a Lei das Estatais revogou o artigo 67 da Lei do Petróleo, concedendo prazo de 24 meses para que as estatais adequassem suas normas internas ao disposto na nova Lei, a exemplo da publicação de seu regulamento interno de licitações e contratos.
O atual regime também procurou aperfeiçoar a alienação de ativos pela Petrobras, visto que, no passado, a preocupação do legislador estava restrita à aquisição de bens e serviços pela estatal, por ser esta, à época, praticamente a única contratante no mercado brasileiro. Essa preocupação, embora existente, deixou de ser exclusiva, já que a Petrobras, como outras companhias petrolíferas, passou a adotar políticas de alienação de ativos e de participações societárias em atividades que não representam o core business da companhia, seja em função do setor, seja em função dos volumes ou dos investimentos a serem realizados.
Em dezembro de 2016, o regime de licitação e contratação das estatais foi regulamentado pelo Decreto nº 8.945/2016. Dentre outras normas, o novo Decreto estabeleceu que as estatais deveriam até 30 de junho de 2018 editar seus próprios regulamentos de licitação e contratos, sendo “permitida a utilização da legislação anterior para os procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até a edição do regulamento interno ou até o dia 30 de junho de 2018, o que ocorrer primeiro”.
Logo após a promulgação da Lei das Estatais, em março de 2017, o Tribunal de Contras da União – TCU, como órgão de controle externo, deu provimento à Representação da Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura de Petróleo, Gás Natural e Mineração, ao decidir, no Acórdão nº 442/2017, em Sessão Plenária, que a Petrobras reiniciasse seu programa de desinvestimento, com exceção de alguns projetos que, no entendimento do plenário, poderiam prosseguir a partir da fase em que se encontravam, com a utilização da nova sistemática trazida pela Lei das Estatais.
Em seguida, a Petrobras retoma o seu programa de desinvestimento com base nas diretrizes aprovadas pelo TCU e, em cumprimento da Lei das Estatais, publica, em janeiro de 2018, o seu novo “Regulamento de Licitações e Contratos”, que, em linhas gerais, detalha o rito a ser seguido pela empresa e pelos participantes do certame em todas as fases do procedimento licitatório.
Em suma: as normas que regem o programa de desinvestimento da Petrobras já estão definidas e suficientemente detalhadas na Lei do Petróleo, na Lei do Regime de Partilha, na Lei das Estatais, no Decreto nº 8.945/2016 e no Regulamento de Licitações e Contratos da Petrobras. O programa de desinvestimento passou inclusive pelo crivo do TCU. Tais normas não foram afetadas pela recente decisão do STF. O Decreto nº 9.355/2018 trouxe normas periféricas e a suspensão de sua eficácia não afeta as alienações em curso ou futuras da estatal, que podem ser legitimamente conduzidas a partir das normas acima citadas. O programa de desinvestimento da Petrobras não frustra o processo competitivo e está em linha com o interesse público de acordo com o regime jurídico aplicável à alienação de ativos por sociedade de economia mista.
Por outro lado, as discussões acerca da legalidade do Decreto nº 9.355/2018 abrem uma oportunidade para que o novo comando da estatal reveja alguns aspectos do atual modelo de alienação de ativos, de forma a torná-lo mais célere e atrativo, quando do desinvestimento de futuras áreas, sobretudo em virtude da recente queda dos preços do petróleo no mercado internacional.
Dentre esses aspectos, destacamos: (i) a revisão do conceito que admite, em determinadas circunstâncias, novas ofertas, mesmo após a apresentação da binding offer mais vantajosa; (ii) o reexame da necessidade de downpayment antes do closing da operação (que poderia ser substituída por penalidades mais fortes, como a proibição de contratar com a estatal, se o closing não ocorrer por falha comprovada do comprador); e (iii) a convocação de audiências com a presença dos participantes para abertura dos envelopes e para outras fases importantes do certame, ou mesmo para colher comentários de potenciais interessados aos modelos contratuais que servirão de base para a operação.
A Petrobras dispõe do arcabouço jurídico para prosseguir com o seu programa de desinvestimento e o novo comando da estatal tem a oportunidade de promover o aperfeiçoamento necessário das regras internas de regência dos futuros certames.
*Paulo Valois Pires é sócio do escritório Schmidt Valois
https://bepetroleo.editorabrasilenergia.com.br/paulo-valois-desinvestimento-garantido/